PT/EN

Monique Eleb é um dos expoentes do estudo da habitação e protagonista de importante reflexão sobre a sua transformação desde o século XVII até hoje. Na sua análise da casa burguesa, coloca em evidência a importância do espaço como um dispositivo, ou seja, pensado e produzido como um mecanismo particular de modo a criar um efeito respeitante às condutas e às práticas, de forma explícita ou implícita.
     Na longue durée do século XIX até ao início da Segunda Grande Guerra, a casa individual burguesa vai ser o centro da acção de diferentes especialistas, que encontram no seio do privado um território indispensável de normalização dos espaços e moralização dos comportamentos, para a defesa de um ideal colectivo e público. Ideólogos, higienistas, políticos, médicos, juristas, etc., ao moldarem a casa e a vida privada que nela se desenrola, a vida familiar, redefinem a ideia de privado como interesse público, teorizando uma forma ideal de habitação para todos e abrindo assim os fundamentos para a definição de uma nova arquitectura.
     Esta forma ideal de habitar, negociada entre res publica e privada, é a alavanca do desenho arquitectónico que durante o século XIX irá dirigir a sua atenção da casa individual à habitação co-lectiva, transformando o problema da habitação, pela primeira vez, no tema central da investigação arquitectónica do século XX. A resposta a esta acção disciplinadora do habitar vai apontar novos comportamentos domésticos e, com eles, de novo, mais normativas são estabelecidas para a conformação do desenho dos espaços, sendo o espaço visto como um dos principais reguladores das vivências dos seus habitantes. Assim, é neste longo e lento processo que o espaço passa a ser entendido como um objecto concreto, que importa disciplinar, regular e controlar, como meio para atingir uma ordem social adequada ao modelo familiar fixado, elo fundamental para uma sociedade ordenada e produtiva. O espaço compartimentado da casa é, nesta perspectiva, um mecanismo de habitar, antes de ser une machine à habiter, que conglomera diferentes partes sobre as quais é possível determinar valores, áreas e volumes, larguras e alturas que, entre mínimos e máximos encontrados na ciência da época, definem passagens, relações, sequências, hierarquias, perspectivas, ou seja, o seu projecto arquitectónico A configuração destes atributos espaciais e a assertividade presumida da sua produção como valor sociocultural determinam o dispositivo espacial que, em cada momento, época, ou lugar, caracteriza o espaço doméstico da casa.
     É através destes dispositivos – teorizados por Monique Eleb – e da sua adopção projectual, concreta, à casa burguesa que A arquitectura do quotidiano analisa o espaço doméstico e carac-teriza a sua transformação no final do século XIX portuense. Num estudo pormenorizado e rigoroso, servido por uma escrita justa, os dispositivos espaciais adoptados pelos projectistas que ergueram estas casas, condutores de obras, engenheiros e arquitectos são expostos com uma calma cirúrgica, de quem sabe estar a dissecar e a expor um mecanismo complexo e pleno de interacções, a reter e a comunicar com a indispensável atenção às consequências da produção de outra narrativa arquitectónica da abertura do novo século e do Moderno.
     A investigação conduzida sobre a casa é sustentada por uma organização capitular extensa, que não despreza o valor da descrição como acto fundamental na identificação, passo a passo, dos espaços, das diferentes estâncias domésticas e do projecto arquitectónico que os determina. O olhar para a casa, do exterior público ao interior privado e aos seus espaços de mediação (muros, mirantes, torreões e logradouros), é estruturado em duas partes fundamentais: “O espaço doméstico, a burguesia e o Porto” e “Entre o privado e o público”.
     A primeira parte, ao situar na cidade do Porto o território onde se edifica a casa burguesa em estudo, está, não só a circunscrever o universo de trabalho, mas, fundamentalmente, a identificar um lugar que marca esta casa. Assim, estabelece algo de fundamental no estudo da casa; a articulação entre o geral, o que se repete nas casas de uma mesma época (num mesmo círculo cultural), e o particular, vincado pelo conhecimento do local e dos contextos convocados, determinantes para interpretação das inflexões próprias desta casa. Esta viagem entre geral e particular, trabalhada na narrativa de A arquitectura do quotidiano, coloca a casa portuense no contexto amplo da acção burguesa que, no Porto, ou em Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo– assim referido por Cesário Verde– edifica um projecto doméstico com valores comuns, determinados pela representação e diferenciação. Perceber esta dinâmica, na recusa de qualquer provincianismo, permite também que a casa, entendida como obra singular, não seja o centro da investigação. A casa da burguesia contém o desejo de abandonar a ideia aristocrática do palacete singular, excepcional na forma e de autor reconhecido, para se fixar numa redução essencial da casa e, especialmente, da casa urbana, factor determinante para a introdução de outros modos de vida, com uma arquitectura disponível à sistematização do projecto e da construção, pela progressiva estandardização do desenho e industrialização da construção e dos seus componentes. A casa burguesa tende para uma “produção corrente”. A percepção deste processo é conduzida com o cruzamento de diferentes materiais iconográficos e bibliográficos que, ao explorarem outros cami-nhos da história da casa, permitem confrontar o Porto numa relação homóloga com a Europa, a arquitectura e a burguesia do seu tempo.
     A segunda parte de A arquitectura do quotidiano concentra-se na investigação do feixe temático essencial para a interpretação da casa: a tensão entre público e privado. A sua narrativa é disso resultado eloquente ao comprovar, mais do que descobrir, que a casa burguesa no Porto é também resultado deste binómio, chave maior dos processos de transformação da arquitectura na passagem para o século XX.
     Esta investigação é o resultado de um trabalho moroso, conduzido pelo exame dos arquivos, confrontação de processos de obra e pela sua interpretação adequada, que pode parecer, aos menos avisados, somente repetição, afinal, do que já se sabia através da Architecture de la vie privée (Monique Eleb), da História da vida privada (Georges Duby) – obras tutelares deste trabalho – ou, ainda, do Il progetto domestico (Georges Teyssot). Contudo, não é assim. O valor intrínseco desta investigação e, sobretudo, a sua indispensabilidade no panorama do conhecimento deste tema em Portugal, determinam a sua originalidade e total pertinência, através de um trabalho nunca antes realizado para o Porto. Assim, se este trabalho confirma os processos de transformação da casa nesta época, traduzindo a cor da especificidade portuense, também participa na construção de um novo caminho para uma nova história, a dos projectistas e dos seus clientes burgueses que edificaram e habitaram a Cidade, na abertura do século XX.
     Nota para o editor: a paginação de A arquitectura do quotidiano, no mínimo, trata-se de um equívoco. A ausência do reconhecimento da importância do desenho e da imagem nesta obra traduz-se em reproduções minúsculas, por vezes cortadas, de elementos desenhados, e na falta de uma hierarquia valorizadora das imagens fundamentais. Estes elementos gráficos, que não podem ser entendidos como mera ilustração, têm importância equivalente ao texto. Obras como as referidas anteriormente podem ser exemplo de como o desenho é documento, importante como nova fonte para posteriores investigações.|

 


VER livro 1 #234
VER livro 2 #234
VER livro 1 #235
VER livro 2 #235
VER livro 1 #236
VER livro 2 #236
VER livro 1 #237
VER livro 2 #237
VER livro 3 #237
VER livro 1 #238
VER livro 2 #238
VER livro 3 #238
VER livro 1 #239
VER livro 2 #239
VER livro 3 #239
VER livro 1 #241
VER livro 2 #241
VER livro 3 #241
VER livro 1 #242
VER livro 2 #242
VER livro 3 #242
VER livro 1 #243
VER livro 2 #243
VER livro 3 #243
VER livro 1 #244
VER livro 2 #244
VER livro 3 #244
 FOLHEAR REVISTA